Operadores do direito precisam debater a influência tecnológica no cotidiano

06 de dezembro de 2017
Autor: Juiz Marcelo Mesquita Silva

Conduzir veículo que não possua sistema de condução autônoma ou interferir no programa ou eletrônica de veículo autônomo, de modo a desligar tal funcionalidade, com o propósito de trafegar em via destinada exclusivamente a esse fim.

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.

Trata-se do novo tipo penal introduzido pela Lei 19.480, de 2032, que modifica o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), acrescentando o artigo 309-A. Consiste em crime de mero perigo abstrato, bastando que o agente conduza um veículo tradicional ou que desligue o sistema de condução autônoma em via especialmente destinada a esse fim. Como exemplo dessas, temos algumas estradas e vias expressas de grandes cidades, que há poucos anos foram otimizadas para receber a tecnologia, reduzindo drasticamente, em mais de 90%, o número de acidentes com mortes [1].

A lei em comento decorreu de uma fatalidade ocorrida durante o carnaval de 2032 e que consternou a população, quando um jovem desligou propositalmente o sistema de condução automática do veículo, no intuito de inibir o redutor de velocidade, para acelerar na via.

Em alta velocidade, ele causou a morte de quatro inocentes, além de perder a própria vida. Infelizmente, diante de nossa histórica novela legislativa, não conseguimos antever, na medida certa, a necessidade de inovação normativa, mormente na seara penal, e aguardamos um fato marcante para introduzir certos diplomas legais.

O mesmo sucede agora com a Lei 19.480, de 18 de maio de 2032, que surge como resposta ao infortúnio narrado, que poderia ter sido evitado diante das inúmeras propostas de especialistas e de meia dúzia de projetos de lei cuja tramitação vinham se arrastando há meses.

Apesar da importância e adequação da norma, encontraremos, como é natural, alguns doutrinadores e entendimentos contrários à ideia, com o argumento de que seria necessário o efetivo dano para tipificar a conduta. Poderiam dizer que, se a pessoa está conduzindo de forma responsável, devidamente habilitada, sem qualquer influência de substâncias que lhe diminuam a capacidade cognitiva e motora, não se poderia retirar a sua possibilidade de dirigir, o inafastável direito de ir e vir.

Em verdade a lei não extirpa quaisquer garantias, ao contrário, busca resguardar não só o direito do indivíduo, alcançado pela norma, como de todos que fazem uso do transporte autônomo.

Não há como deixar de compreender que um veículo autônomo — com dezenas de câmeras, sensores de distância, visão infravermelha, comunicação em tempo real com outros automóveis, que proporciona a troca instantânea de informações acerca das intenções de manobras, velocidade, aceleração, desaceleração, eventuais problemas e necessidade de parada etc. — seja extremamente seguro, e muitíssimo mais confiável e eficaz do que nós humanos, portadores de apenas dois sensores (por vezes míopes), que são as principais portas de entrada de dados que norteiam — ou que ao menos deveriam nortear — nossas tomadas de decisões, quando ao volante. Já é hora de reconhecermos nossas limitações, pois já não estamos no topo da pirâmide. Máquinas e softwares nos ultrapassaram há tempos, em diversas searas, e muito mais virá.”

Voltando ao presente, apesar de, em um primeiro momento, pensarmos que a criminalização do mero ato de dirigir pareça algo absurdo, fantasioso ou futurista, apenas este último aspecto se confirma e, ainda assim, desde que dissociado da idéia de ficção.

Estamos a não mais de 15 ou 20 anos do tempo em que iremos nos deparar com uma norma do gênero. As grandes montadoras já estão investindo bilhões de dólares no estudo e desenvolvimento dessa tecnologia e formando consórcios, com o propósito de diminuir custos e abreviar o tempo de produção dos veículos.

Vivemos dias onde a Inteligência Artificial (IA) (através de seus ramos: processamento de linguagem natural, aprendizado de máquina, redes neurais etc.), a robotização e o big data estão sendo inseridos, de maneira silenciosa, em todas as atividades e não percebemos a profundidade das mudanças em curso, muito menos, das vindouras.

Três grandes argumentos (diga-se, equívocos) surgem ao falarmos do assunto.: 1. “isso está longe de acontecer”; 2. “as pessoas se adaptarão e terão novos empregos, assim como ocorreu no passado”; 3. “toda essa automatização só chegará ao Brasil e a determinados países depois de aportar nos países ricos”.

O primeiro podemos refutar de maneira resoluta: não está longe de acontecer, já está em andamento e vem crescendo em escala vertiginosa. Para ilustrar, poderíamos elencar dezenas de exemplos, mas ficaremos apenas com um que reputamos mais notório.

O setor energético, que movimenta cerca de 24% do PIB mundial, empregando centenas de milhões de pessoas de maneira direta ou indireta, está em vias de acabar com o longo, ultrapassado e dispendioso modelo de consumo de combustíveis fósseis, que compreende estudos, prospecção, construção, extração, transporte, refinamento, transporte, distribuição e consumo.

O uso da maior fonte de energia renovável, o sol, possibilitará uma cadeia de produção mais simples e econômica, capaz de implementar uma única vez: produção, distribuição, instalação e consumo, tout court, como bem asseverou Paco Ragageles [2], um dos visionários que, há mais de vinte anos, criou um dos maiores eventos de tecnologia do mundo, a Campus Party [3].

Por outro lado, quanto ao argumento de que poderemos nos adaptar e abraçar outras novas profissões, nada mais equivocado. Costumamos ouvir comparativos com a revolução industrial, quando o homem do campo começou a ceder espaço para as máquinas de semear e foi trabalhar em linhas de montagem ou quando o artesão passou a trabalhar em teares a vapor, extinguindo a manufatura e iniciando a era da produção mecanizada. De fato, houve pleno aproveitamento do labor, mas apenas pela parca necessidade de capacitação do operário e por ainda ser necessário um forte trabalho braçal e repetitivo nas fábricas.

Podemos dizer que uma nova revolução, denominada de Revolução Digital Cognitiva (semeada no microprocessamento, adubada pela internet, nutrida pela inteligência artificial e iluminada pelo big data), nasceu em junho de 2014, tendo como marco inicial representativo a superação do teste de Turing [4] [5]. Surge, portanto, uma era em que os algoritmos inteligentes abrem alas para um impredizível futuro, sendo imperioso dizer que a incerteza é apenas quanto à estação de chegada, não quanto à viagem, já em curso.

Se não há, ou é quase inexistente, um remanejamento vertical, já que o abismo trazido por tais ferramentas advém de uma linha de montagem ainda mais tecnológica, específica, restrita e automatizada, que não permite o aproveitamento de muitas pessoas, poderia se pensar na viabilidade de uma realocação horizontal, na medida em que a robotização ou a inserção de uma inteligência que pode extinguir uma profissão avança por setores.

Acontece que isso ocorrerá, simultaneamente, em diversas áreas. Assim, trabalhadores da construção civil, atendentes de telemarketing, contadores, corretores, analistas de crédito, caixas de banco, vendedores em geral, expedidores de mercadorias, operadores de máquinas, frentistas etc. perderão seus postos, até que a única alegria do rebanho (que se dá quando o lobo come a ovelha do lado), conforme asseverou Schopenhauer, não terá mais espaço, pois quase todos seremos digeridos pela alcatéia de bits ou qubits (bits quânticos).

É evidente que não estamos diante de uma mera transformação ou de uma discreta revolução. Nos situamos no parapeito de uma ruptura sem precedentes, sendo de uma simplicidade franciscana a ideia de que iremos apenas trocar de emprego, o que beira a irresponsabilidade e se constitui não uma solução que cria uma ponte, mas um sofisma que dá um empurrão rumo ao abismo.

Em relação à premissa de que todo esse tsunami tecnológico, devorador de postos de trabalho, ocorrerá inicialmente nos países mais ricos, trata-se de um grande equívoco. Estudo do Banco Mundial, publicado no World Development Report de 2016, aponta uma altíssima taxa de automatização em países em desenvolvimento, a exemplo da Etiópia (85%), da Tailândia (72%) e da Nigéria (65%). O Brasil e outros países da América Latina não ficam longe, chegando a superar os Estados Unidos (47%) [6].

Diversos fatores levam a este cenário, entre eles uma economia baseada em setores e atividades com pouca tecnologia agregada, de caráter mecânico e repetitivo, com parca taxa de inovação e baixa ou média exigência de habilidades cognitivas das pessoas. Quanto mais simples os postos de trabalho, maior a facilidade de sua substituição. Países que não investem em pesquisas, não geram patentes e estão dissociados da indústria criativa entrarão mais rapidamente na espiral da automatização e do desaparecimento de empregos.

Depois de tentarmos refutar os três mantras da negação da Revolução Digital Cognitiva, cabe-nos destacar três ponderações. A primeira é a necessidade de apresentarmos os problemas, anteciparmos os debates, estudarmos as consequências dessa ruptura e procurarmos soluções, de modo a minorar o impacto que centenas de milhões de pessoas sofrerão, em menos de duas décadas, ao perderem seus empregos. Nesse sentido, existem estudos, instituições e movimentos, a exemplo do www.feelthefure.vision, que buscam ordenar tais informações e espraiar a discussão sobre esta problemática, em busca de respostas.

A segunda cautela repousa na necessidade de realinharmos a educação de nossas crianças e jovens para um período de incertezas, nos próximos trinta anos. Se é certo que, em um século, a situação da humanidade estará consolidada, quando teremos aprendido a viver ao lado de máquinas e algoritmos (harmoniosamente ou não), o mesmo não se pode dizer dessa fase de transição. Ela não será corriqueira e a melhor estratégia para essa etapa na história da humanidade é o investimento na educação, que foi apontada como a mais adequada opção para minimizar os efeitos negativos da automatização dos postos de trabalho, conforme estudo feito pela parceria entre a Citi e a Oxford Martin School [7].

Precisamos rever os métodos e promover a inserção tecnológica para potencializar o ensino. Temos de acabar com a compartimentação do conhecimento, apostar na criatividade e na inventividade, no trabalho e no esforço em equipe, com o fito de se valer das habilidades de cada pessoa. Não fará sentido algum a formação acadêmica, hoje em voga, baseada em um diploma de uma área. A perspectiva especialista não conseguirá competir com as ferramentas da Revolução Digital Cognitiva.

Uma outra precaução primordial é a necessidade de internalizarmos, nós, operadores do Direito, a dimensão dessas mudanças e debatermos seus reflexos em institutos e garantias essenciais, como democracia, jurisdição, liberdade, privacidade, livre arbítrio etc. Devemos buscar respostas que assegurem aqueles institutos e garantias, além de perquirir a imperiosidade de mudança do Direito, do processo legislativo e, até mesmo, da viabilidade de manutenção de advogados, juízes, promotores e servidores nos moldes que hoje conhecemos. Inicialmente seremos auxiliados por sistemas cognitivos, mas o passo seguinte é mais largo e desafiador.

Por fim, para não perdermos o mote da abertura deste artigo, poderíamos encerrar esta “viagem” com uma outra nota futurista. Quem sabe uma abolitio criminis?

“Foi publicada ontem, na Blockchain de Atos Públicos Federais, a Lei 25.775, de 2050, que revogou o artigo 309-A, do CTB. Diante da eloquência da norma, nada nos resta a debater sobre o assunto a não ser a letargia de sua chegada, afinal, há anos, não existe sequer volante nos carros, tratando-se a norma revogada de autêntico exemplo de crime impossível.”

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[1] Apesar do trecho ficcional do artigo, essa projeção foi divulgada em 2015, quando se estimou uma redução de fatalidades no trânsito, nos Estados Unidos, com a introdução de veículos autônomos, na ordem de 90%, salvando cerca de 300 mil pessoas em uma década, com uma economia de mais de 190 bilhões de dólares com despesas decorrentes de acidentes para o mesmo período. Disponível em: <http://www.mckinsey.com/industries/automotive-and-assembly/our-insights/ten-ways-autonomous-driving-could-redefine-the-automotive-world>. Acesso em: 21 de setembro de 2017.

[2] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lpXJ4RtxzQ4>. Acesso em: 21 de setembro de 2017.

[3] A Campus Party congrega dezenas de milhares de jovens, todos os anos, que ficam acampados no próprio local do evento e participam de palestras, maratonas e workshops sobre tecnologia, inovação, ciência, criatividade e empreendedorismo. Por lá já passaram centenas de palestrantes como: Al Gore, Stephen Hawking, Steve Wozniak, Buz Aldrin, Kevin Mitnick, Viton Cerf…

[4] Alan Turing foi um matemático e criptoanalista britânico que decifrou a máquina alemã de criptografia, Enigma, durante a segunda grande guerra, e um dos precursores da ciência da computação, do computador moderno e da inteligência artificial.

[5] O teste foi realizado na Royal Society of London, em 7 de junho de 2014, com um cluster de cinco computadores que utilizou IA para se passar por um garoto de 13 anos, Eugene Goostman, enganando 33% dos examinadores durantes conversas, via teclado, de cinco minutos. Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2014/jun/08/super-computer-simulates-13-year-old-boy-passes-turing-test>. Acesso em 24 de setembro de 2017.

[6] Disponível em: <http://documents.worldbank.org/curated/en/896971468194972881/pdf/102725-PUB-Replacement-PUBLIC.pdf>. Acesso em 26 de setembro de 2017.

[7] Disponível em: <http://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/reports/Citi_GPS_Technology_Work_2.pdf>. Acesso em 30 de setembro de 2017.

Marcelo Mesquita Silva é juiz, doutorando em Biotecnologia pela Renorbio e mestre em Direito Internacional Econômico pela Universidade Católica de Brasília.

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